Lima Duarte, 60 anos de cinema


Mostra exibe a partir de hoje, no CCBB, os 32 filmes que ganharam densidade na interpretação do ator

Ubiratan Brasil

Zeca Diabo, Sinhozinho Malta, Salviano Lisboa - é grande a lista de personagens antológicos criados pelo ator Lima Duarte para as novelas de televisão. Em todas, o processo de criação foi basicamente o mesmo, iniciado com uma pesquisa psicológica de cada tipo. "Depois, é descobrir algum bordão ou gesto característico que caia no gosto do público e acionar o piloto automático", comenta ele que, apesar de sempre buscar a melhor interpretação para cada folhetim televisivo, acredita que o trabalho mais aprofundado só encontra espaço no cinema. "É nos filmes que consigo captar o lado mais obscuro de cada personagem."

A observação poderá ser comprovada a partir de hoje, quando começa a mostra Lima Duarte: Profissão Ator, evento com a curadoria de Amilton Pinheiro e que vai ocupar o Centro Cultural Banco do Brasil até o dia 16 de agosto, período em que serão exibidos todos os seus 32 filmes realizados em 60 anos de carreira. E, para celebrar a data, haverá também sessões de debates realizadas durante três quartas-feiras consecutivas, começando amanhã com a presença do crítico de cinema Leon Cakoff. Nas semanas seguintes, o encontro vai reunir o ator com os cineastas Hermano Penna e Paulo Morelli (dia 5), e Alain Fresnot e Nuno Cesar Abreu (dia 12).

Trata-se da homenagem a um ator que confere densidade e universalidade a cada papel escolhido. Não apenas pelo domínio da técnica representativa, mas pela profunda investigação que promove no início de um novo processo. "Toda interpretação deve ser psicológica", acredita Lima, experiente aos 79 anos. "A beleza está no espírito, na alma do povo. É a partir dessa descoberta que se entende como o personagem se veste, como deve andar e falar."

E tal entendimento é facilitado pelo fato de o ator também ser um grande leitor, especialmente da literatura clássica, que envolve desde a obra de João Guimarães Rosa até os sermões do padre Antônio Vieira. Curiosamente, dos 32 filmes já realizados por Lima, exatamente a metade é inspirada em romances, contos, peças ou mesmo nos discursos de Vieira (confira a lista abaixo). "Eu não tinha notado isso, mas não acredito que seja uma coincidência."

A compreensão da obra original permite ao ator dispor de um manancial de recursos para compor seu personagem. Uma intimidade tamanha que influencia diretamente o produto final. É o caso, por exemplo, de Sargento Getúlio, filme dirigido por Hermano Pena em 1978 (e lançado em 1983), inspirado no texto de João Ubaldo Ribeiro.

Para muitos, trata-se da principal interpretação cinematográfica de Lima Duarte, que vive o rude sargento da PM de Sergipe encarregado, no final dos anos 1940, de acompanhar um preso político inimigo de seu chefe. Durante a viagem, ele discute com o prisioneiro e, mesmo que uma mudança na conjuntura política o obrigue a libertá-lo, Getúlio decide cumprir sua missão até o fim, transformando a remoção no principal sentido de sua existência.

"Getúlio já estranha acompanhar um homem cujo único crime foi exercer o direito de pensar diferente, ou seja, dispõe de um conhecimento que ele, mesmo com o poder nas mãos, não pode alcançar", conta Lima. "Assim, na minha leitura, Getúlio enlouquece porque é obrigado a prender um homem que não matou ninguém, mas que cometeu o crime de ter frequentado uma escola."

A ambivalência da interpretação do ator desperta reações distintas na plateia, que tanto odeia como ama o personagem. A mesma riqueza de detalhes o inspirou a compor Seu Noronha, o contínuo de Os Sete Gatinhos, dirigido por Neville d?Almeida em 1980 e inspirado na peça de Nelson Rodrigues. Pai de cinco moças, ele luta para preservar a castidade da caçula, única a não se transformar em prostituta. Ele enlouquece, porém, ao descobrir que a moça de 15 anos está grávida.

"Aqui, o principal desafio foi manter o tom prosaico do texto original", comenta Lima. "Nelson era um escritor sensível, que sabia filtrar a sabedoria popular e depois isolá-la em um contexto." Ele se lembra, como exemplo, da cena de duas velhas que, na janela, criticam uma jovem viúva. "Uma delas diz: ?O marido foi enterrado de manhã e, de tarde, ela já estava chupando um sorvete Chicabon. Isso é dor que se apresente?? É genial."

Lima também enfrentou dificuldades em uma sequência aparentemente rotineira: a que mostra Noronha descobrindo desenhos de pênis voadores na parede do banheiro. "Parece simples mas passei a noite quebrando a cabeça para descobrir como melhor realizá-la. É mais difícil que o ?ser ou não ser? do Hamlet, que qualquer ator sabe como interpretar." Para complicar, o próprio Nelson Rodrigues acompanhou a filmagem da cena. "Ele sabia recitar as falas melhor que ninguém", atesta Lima, confessando não ter encontrado o tom desejado.

Nem sempre, porém, as intervenções do ator são aceitas. Em Jogo da Vida, dirigido por Maurice Capovilla em 1977, o autor da história original, João Antônio, também colaborador do roteiro, não gostou de suas sugestões. No papel de um velho malandro, Lima propôs a cena em que ele se incomoda com um cachorro, cujo olhar pidão o impede de saborear uma sardinha recém-comprada. "Para mim, a cena exalava uma poesia gritante, mas o autor não viu da mesma forma e a desaprovou." ,

Serviço

Lima Duarte: Profissão Ator. 4.ª, 15 h, Guerra Conjugal (1975), de Joaquim Pedro de Andrade; 17 h, Palavra e Utopia (2000), de Manoel de Oliveira. CCBB. Rua Álvares Penteado, 112, Centro, tel. 3113-3651. 4.ª a dom., a partir das 15 h. R$ 4. Até 16/8. Hoje, cerimônia de abertura e exibição do filme O Preço da Paz, de Paulo Morelli

OS Filmes Adaptados

O SOBRADO (1956), Walter George Dürst e Cassiano Gabus Mendes , adaptado de uma parte do romance O Tempo e o Vento de Erico Verissimo

PAIXÃO DE GAÚCHO (1957), Walter George Dürst, adaptado do romance O Gaúcho, de José de Alencar

CHÃO BRUTO (1958), Dionísio de Azevedo, adaptado do romance de Hernâni Donato

O REI PELÉ (1963), Carlos Hugo Christensen, inspirado no biografia Eu Sou Pelé, de Benedito Ruy Barbosa

GUERRA CONJUGAL (1975), Joaquim Pedro de Andrade, adaptado de textos de Dalton Trevisan

O CRIME DO ZÉ BIGORNA (1977), Anselmo Duarte, baseado na história de Lauro César Muniz

O JOGO DA VIDA (1977), Maurice Capovilla, adaptado do livro Malagueta, Perus e Bacanaço, de João Antônio

CONTOS ERÓTICOS, episódio O Arremate (1979), de Eduardo Escorel, adaptado do conto de Aércio Flávio Consolin

OS SETE GATINHOS (1980), Neville D?Almeida, adaptado da peça de Nelson Rodrigues

SARGENTO GETÚLIO (1983), Hermano Penna, adaptado do romance de João Ubaldo Ribeiro

LUA CHEIA (1989), Alain Fresnot, inspirado na peça Puntilla e Seu Criado Matti, de Bertolt Brecht

A OSTRA E O VENTO (1997), Walter Lima Júnior, adaptado do romance de Moacir C. Lopes

O AUTO DA COMPADECIDA (2000), Guel Arraes, adaptada da peça de Ariano Suassuna

PALAVRA E UTOPIA (2000), Manoel de Oliveira, inspirado nos Sermões do Padre Antônio Vieira

ESPELHO MÁGICO (2005), Manoel de Oliveira, inspirado no romance A Alma dos Ricos, de Agustina Bessa-Luís

DEPOIS DAQUELE BAILE (2006), Roberto Bomtempo, adaptação da peça de Rogério Falabella

TOPOGRAFIA DE UM DESNUDO (2009), Teresa Aguiar, adaptada da peça do chileno Jorge Diaz