ESPECIAL: A ex-prostituta Belisca se orgulha de ser a personagem mais popular de Unaí.

Escrito por Gustavo Aguiar e Raissa Gomes


Bilisca é destaque em revista da UNB

A ex-prostituta Belisca se orgulha de ser a personagem mais popular de Unaí.
Onde mora dona Belisca? Na cidade de ruas mal sinalizadas pode ser difícil encontrar qualquer um. Menos ela. “Quem sabe disso são os homens”, foge da pergunta a vendedora da quitandinha. O pudor tem motivo: Dona Belisca foi prostituta durante cerca de 15 anos e é a protagonista de uma das lendas urbanas mais conhecidas de Unaí. Ela teria se submetido a uma operação ginecológica e rifado sua “segunda virgindade” entre aqueles que podiam pagar pelo bilhete.
Belisca não é só isso. Órfã de pai aos 16, mãe solteira aos 19, prostituta aos 20, candidata a vereadora aos 42. Hoje, aos 59 anos, a história dela se confunde com a da cidade do interior de Minas Gerais a 160 km de Brasília. Timidez não combina com Belisca, que até dançou com Jerry Adriani, quando ele ainda era o cantor da Jovem Guarda e todas as moças solteiras tinham uma foto dele colada na porta do guarda-roupa. Foi numa festa agropecuária em 1969, quando o artista passou pela cidade para divulgar o lançamento de um LP. Uma jovem burlou a segurança e o tirou pra dançar: era Belisca.
No bairro Primavera, depois do balão da padaria, primeira à esquerda, segunda à direita. Quem abre o portão cinza de número 32 é uma mulher muito sorridente, de estatura baixa, cabelos grisalhos curtos, vestido de estampa florida descosturado na altura do ombro. Ela usa um anel de plástico rosa no dedo mínimo imitando um diamante. “Eu estava esperando por vocês”, anuncia. Aliás, quando dona Belisca fala, parece sempre querer anunciar. Ela não faz cerimônia, ri alto, gesticula e não guarda segredo.


UMA BELISCA DE GENTE
Belisca nunca se chamou Iraci, ainda que esse seja o nome de registro. Ela recebeu o apelido quando bebê porque era muito pequena. “Uma belisquinha de gente”, como ela explica alegre. “Aí eu fiquei Belisca mesmo. Tenho trauma porque Iraci nem é nome de mulher”, declara. Uma família formada por pai (que viria a morrer em 1966), mãe e quatro irmãos como a dela era o padrão naquele tempo. Não fosse pelo fato da filha mais nova, de 19 anos, ter engravidado ainda solteira. Era o ano de 1969.
“As pessoas perguntavam e eu dizia logo que o pai era o Jerry Adriani. Na época todo mundo acreditou.” Mas ela estava só brincando. Ou melhor, se defendendo. Belisca sabia o que podia sofrer se revelasse a identidade do verdadeiro pai. Numa cidade pequena, burburinho é o que não falta, e a pressão para casar seria maior se todos soubessem quem era ele. O pai de Cláudia, primeira filha de Belisca, era, na verdade, um rapaz de 22 anos que trabalhava na companhia asfáltica de Unaí.
“Fui para Patos de Minas logo que ela nasceu. Ninguém me dava emprego por causa do preconceito. Ser mãe solteira em cidade do interior não é fácil”, lembra. Como o primeiro namorado não podia lhe dar qualquer futuro, casar não era opção. “Éramos jovens demais”, ela avalia. Dele, só sabe que se mudou para Uberlândia e teria se arranjado com alguém por lá. Sem seu apoio para criar Cláudia, Belisca se virou como pôde. Trabalhou como bóia-fria em fazendas da região, mas o dinheiro que ganhava era insuficiente para ajudar a mãe e sustentar a filha.


NA ZONA
Foi quando morava em Patos de Minas que Belisca começou a trabalhar como prostituta. Ela era jovem e bonita, e o fato de ter concluído o colegial a colocava em um posto favorecido. Já de volta à Unaí, encontrar clientes não seria muito difícil. “Atendíamos a todo tipo de homens. Desde rapazes mais novos até os casados e insatisfeitos com o casamento. Políticos, homens ricos e importantes e os que estavam só de passagem pela cidade sempre paravam por lá”, recorda Belisca. Lá eram as chamadas zonas, estabelecimentos sede de festas noturnas e onde, normalmente, se hospedavam moças que pagavam pelo direito de moradia e aluguel de quartos com parte do dinheiro ganho com os programas.
Belisca morou em uma casa de prostituição dos 20 aos 33 anos. O estabelecimento que ficava no bairro de Canaã, na periferia de Unaí, abrigava entre sete e 10 garotas. Os lugares comuns a todas eram a sala (que durante a noite virava salão de recepção onde também se vendia bebidas e se tocava música), a cozinha, os banheiros e o lavabo. Embora em caso de lotação máxima as garotas tivessem que dividir os quartos, Belisca tinha leito próprio. A filha Cláudia morava do outro lado da cidade com a avó e a tia.
As zonas não existem mais. Pelo menos, não na concepção que tinham no passado. Para Valter Rodrigues, 50 anos, morador de Unaí desde 1978, aquela era uma época muito diferente. “Antes não era permitido que os namorados atingissem certo grau de intimidade a não ser depois do casamento, senão a moça ficava mal falada”, ele explica. Valter lembra não só de Belisca, mas da facilidade de freqüentar a zona. “Os rapazes iam porque precisavam se livrar da tensão de um namoro integralmente vigiado pelos pais. Era comum ver menino muito novo nesses ambientes levado pelo próprio pai que incentivava a iniciação sexual com uma prostituta”.
Com Belisca, no entanto, era diferente. “Ela não ia com os menininhos não. Era só gente importante, só figurão”, ressalta Elenir Firmino, outro antigo morador de Unaí. Elenir assume que freqüentava os prostíbulos naquele tempo, mas nunca foi cliente de Belisca. “Ela era bem relacionada e sempre foi vista nas melhores rodas. Mesmo em festas da cidade, Belisca se sentava às mesas das famílias dos homens conhecidos, ria e conversava com suas esposas e não via nenhum problema nisso”, ele relata.
Mas a popularidade não evitou que Belisca enfrentasse também o preconceito. Quando era prostituta, podia ser difícil executar certas atividades pela cidade, mesmo as mais triviais. “Se quisesse um sapato, tinha que pedir pra alguém ir comprar”. Mesmo antes de se tornar garota de programa, ela foi expulsa de uma churrascaria simplesmente pelo fato de ser mãe solteira. “Eles já me diziam que meu lugar era junto com as putas”, lembra.
Depois, a situação ficou ainda pior. “Nem à missa eu podia ir. Só se a igreja fosse distante daqui, onde ninguém me conhecia”. Foi então que Belisca teve a ideia de levar um padre amigo seu até o prostibulo onde morava, e ele concordou. Ela nunca aceitou o fato de ser tratada de forma diferente porque era prostituta. “Não sei por que tanto preconceito se só dei prazer”, questiona.


“LIKE A VIRGIN”
Belisca decidiu correr a rifa que sorteava sua “segunda virgindade” porque precisava de dinheiro para cuidar da mãe, de uma das irmãs e da filha, que tinha, na época, 12 anos. Era início do ano de 1982 quando ela se submeteu a uma perineoplastia. O procedimento consiste em retirar uma pequena porção da musculatura da parede vaginal anterior, resultando no estreitamento do canal de entrada da vagina. A cirurgia do períneo é normalmente feita depois de um parto natural, quando a musculatura do assoalho pélvico é lesionada e se relaxa mais do que o normal. É considerada uma operação estética genital e, por causa do resultado de estreitamento, está muito ligada ao prazer sexual do casal.
“A ideia nem foi minha, mas de alguns amigos que levantaram uma grana para pagar a operação. Depois, eles mesmos organizaram o sorteio”, ela esclarece. O episódio causou alvoroço na pequena cidade, principalmente entre as mulheres casadas. Talvez por isso, o nome do ganhador Belisca prefere guardar. Só revela que ele mora atualmente em Belo Horizonte, e da última vez que os dois se falaram, ele lhe pediu para guardar um bilhete caso ela decidisse correr outra rifa. “Ganhei um bom dinheiro, uns 5 mil cruzeiros. Acho que está na hora de fazer outra”, ela brinca. O dinheiro ganho pagou o aluguel da casa da mãe, a escola da filha e as necessidades do dia-a-dia por cerca de três meses.
A relação entre as prostitutas com quem Belisca dividia o espaço variava de cumplicidade a inveja. ”Tinha muita competição entre as feias e as bonitas, porque nós, bonitas, faturávamos mais. Ali era cobra comendo cobra”. Mesmo assim, o ambiente de disputa não a impediu de tentar ajudá-las. “Muitas eram ignorantes, não sabiam nem assinar o próprio nome”. Por isso, começou a ensiná-las a ler e escrever. Belisca se orgulha ao garantir que muitas abandonaram a zona por causa disso.
Quando chegou a vez dela de abandonar a prostituição, Belisca já não era mais a mesma. “Parei porque tive algumas desilusões com as pessoas com quem convivia. Já não estava dando mais certo e eu não queria mais aquilo para mim”, ela explica. “Ganhei muito dinheiro nessa vida, mas é um dinheiro maldito. Vem tão fácil quanto vai”. Voltou para a casa da mãe, onde morou até pouco depois do nascimento da segunda filha, na década de 90.


ELAS TAMBÉM AMAM
Grandes amores Belisca teve muitos. Nenhum vingou. Apaixonou-se várias vezes, lembra-se principalmente do período em que morou na cidade de Patos de Minas, quando conheceu o homem de sua vida cujo nome ela prefere não revelar. “Eu era muito desnaturada. Não era nada fácil manter um relacionamento comigo”, reconhece. Segundo ela mesma, Belisca é daquelas pessoas cujo destino não lhe reservou a sorte de encontrar um companheiro. Ela assume sentir falta, mas que já se acostumou a viver assim.
Hoje divide a atenção entre a filha mais nova, fruto de um relacionamento que teve em 1995, e três cachorros vira-latas, dos quais salvou a vida. Um deles é quase cego. Foi resgatado dos maltratos de crianças de rua no momento em que elas estavam prestes a lhe furar os olhos com um prego. “Os cachorros são mais verdadeiros que as pessoas. Sinto-me mais a vontade entre os animais”.
Bóia-fria, artesã e quituteira, ela já fez de tudo para se manter. Não perdeu de vista a formação que desejava. Em 1998, prestou vestibular para o curso de Direito no Instituto de Ensino Superior Cenecista de Unaí. “Foi o vestibular de maior ibope. Porque até a Belisca passou”, ela lembrou, referindo-se a si mesma como se falasse de outra pessoa, como se por um momento não se reconhecesse. Ela foi a prostituta que passou no vestibular.
“Aí, pessoas que mexiam com drogas, filhos de médicos que não queriam nada, fizeram a prova também e passaram”. Segundo Belisca, muitos começaram a fazer faculdade por causa dela. Se até uma prostituta conseguia, qualquer um conseguia. Desses, ela afirma:“muitos até já se formaram”.
Ela, não. Promessas de cargos no governo que nunca se concretizaram e dificuldades financeiras fizeram que largasse o curso já no oitavo semestre. Mesmo não pensando em retomar a graduação em Direito, Belisca ainda cogita voltar a estudar. “Agora quero fazer Serviço Social. Eu sei que nasci para ajudar as pessoas”.


BISCA POR BISCA, VOTE NA BELISCA
Foi com esse slogan que Belisca concorreu às eleições municipais para vereador de Unaí, em 1992. Sua maior aposta era a inegável popularidade na cidade. Robert Martins, funcionário de uma padaria no bairro Primavera, garante que Belisca sempre teve o seu voto. Ele a define como “a Rainha da Sucata de Unaí”, comparando-a à protagonista da novela de 1990 da Rede Globo vivida por Regina Duarte. Na trama, a personagem-título penou antes de fazer fortuna com o ferro-velho herdado do pai, mas nunca perdeu a alcunha de “sucateira” entre seus desafetos. “É como a Belisca. Uma mulher de fibra, carismática e que não tem papas na língua”, explica Robert.
Embora seja simpatizante do Partido dos Trabalhadores (PT), a ex-prostituta se candidatou pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). “O PT era muito pequenininho naquele tempo”. Em suas propostas, havia muito de sua história. “Eu queria ajudar as mães solteiras que passaram pelo mesmo que eu. Mas elas não votaram em mim”.
Ela não venceu a eleição em 1992. Depois disso nunca mais quis saber de política. Pelo menos não como candidata. Mesmo assim, Belisca continua presente no cenário político unaiense, e usa a influência que tem entre os políticos para reivindicar melhorias em favor da cidade. Os conhecimentos na faculdade de Direito lhe garantem bons argumentos e conhecimento de causa: “Eu sou a picuinha aqui. Eu falo, eu grito, eu xingo...”.
No entanto, é cautelosa ao comentar os escândalos envolvendo o atual prefeito Antério Mânica. Ele é suspeito de estar envolvido no assassinato de três auditores e um motorista do Ministério do Trabalho em janeiro de 2004. “Aí eu não sei. Quem tem que decidir isso é a justiça”, ela declara.
O posto de personagem mais popular de Unaí é facilmente comprovado: Belisca não dá um passo sequer sem antes encontrar dois ou três conhecidos. Gente de todos os lugares da cidade, de todos os níveis sociais. Entre os amigos não faz distinção, e com eles conversa sobre tudo. Ela os vê já de longe, e nunca se engana. Pergunta do pai, da mãe, fala dos problemas de saúde e, no meio da conversa, tenta sempre empurrar uma venda. Leva na memória o nome de cada um dos que conhece pessoalmente. Dos que não sabe quem são, abraça, ri alto e cumprimenta como se fosse deles a melhor amiga.


DURA NA QUEDA
As histórias vividas nesses 59 anos fizeram a jovem que saiu da cidade natal em busca de uma vida melhor, reencontrar o futuro no lugar de origem. Belisca hoje é menos sonhadora, e sua realidade é de muita luta. Não é tão vaidosa quanto na mocidade, e hoje sai às ruas de Unaí com uma bolsa à tira-colo vendendo doces e bilhetes da Mega-Sena a R$5,00. A conversa agradável, o sorriso fácil e a popularidade ajudam-na a garantir a maior parte da renda. O dinheiro é complementado pela pensão que recebe do pai da segunda filha, Ana Laura, de 14 anos, com quem mora.
Belisca usa sua história para alertar a filha sobre os perigos da vida. “Não escondo nada do meu passado, ela precisa saber”. O bom relacionamento com Ana Laura vem da liberdade que tinha com os pais. “Meu pai é meu maior ídolo”. Mas não é o único. Belisca tem também grande admiração pelo cantor Roberto Carlos, Ayrton Senna, e um menos famoso, mas muito importante: doutor Goulart, seu cardiologista. “Ele me ajudou quando eu mais precisei, salvou minha vida”. É graças ao doutor Carlos Goulart que o coração que já bateu forte diante das emoções vividas continua resistindo à doença de Chagas que contraiu ainda criança.
Os problemas com a saúde vão além dos cardíacos. Uma isquemia cerebral em 2001 enfraqueceu ainda mais a saúde já abalada de Belisca. Mas isso tudo é pequeno para ela. “A pancada da vida é que é dolorida”, afirma, trazendo o ar leve de costume. Parece que nada é forte o suficiente para derrubá-la.
A vida dela, de uma forma ou de outra marcou a história de Unaí, que entre o moderno e o antiquado, ainda educa seus filhos mostrando essa personagem como exemplo a não ser seguido. Mesmo assim, pelos olhos de Belisca não passa arrependimento. Do passado, ela guarda recordações e saudade. “Não mudaria nada do que fiz. Do que mais sinto falta hoje é da minha mãe e da época de prostituição”.
Essa declaração talvez soe estranha a alguns ouvidos. Mas ela completa: “Naquela época éramos mais livres. Tínhamos a liberdade de tomar banhos de cachoeira e nos divertir sem que precisássemos temer qualquer coisa”. A comparação daqueles tempos com os de hoje é inevitável para quem viu tanto. E mostra que mesmo uma mulher desafiadora de sua época sente medos triviais. Ela assume morrer de medo da violência. Medos comuns de uma pessoa que quer voltar a ser comum. “Quero ir para um lugar onde ninguém me conheça”, declara.
Belisca hoje não pinta os cabelos nem as unhas e pouco se importa com as roupas que veste: combina uma blusa rosa - choque, uma calça de malha azul-turquesa e diz que, para o tanto que anda, estar confortável é o que importa. Torce pelo Cruzeiro e detesta ficar muito sozinha. Por isso nunca para em casa. Como boa mineira, não dispensa dois dedos de conversa. História para contar ela tem, e muita. Vícios não tem. Não fuma e bebe só por ocasião. “O único vício que tenho é de conversar e de ser sempre alegre”.


Escrito por Gustavo Aguiar e Raissa Gomes